Haverá leis que descrevam o comportamento humano? O filósofo norte-americano Donald Davidson dizia que o que distingue o comportamento humano é o fato de que este não poder ser capturado por leis de espécie alguma. Em outras palavras, identificamos, no mundo, o comportamento, precisamente por sua plasticidade e flexibilidade, o que o impediria de ser capturado por leis universais. Esta identificação começaria com a idéia de resposta diferencial que atingiria, na sua forma mais avançada, uma imprevisibilidade essencial, que resultaria da elevada plasticidade do comportamento de organismos complexos na sua interação com o meio ambiente. As leis do comportamento, se é que as há, não seriam como as leis da física (pelo menos não da macrofísica), ou seja, expressão de necessidade e inexorabilidade. Leis científicas são construções lingüísticas e a linguagem se derivou do comportamento. É o comportamento que explica a linguagem e não vice-versa. Tentar explicar o comportamento a partir da linguagem seria tão absurdo quanto supor que quem observa através de um microscópio poderia ver de que cor é seu tubo. Construir uma ciência do comportamento seria uma tarefa que extrapolaria nossas capacidades cognitivas. O comportamento seria um evento físico, mas não poderia ser capturado pelas leis da física, embora, supostamente, sua ocorrência não seja incompatível com essas leis. Esta posição ficou conhecida pelo nome de monismo anômalo. Monismo, pois Davidson era um filósofo materialista, a despeito de não acreditar na possibilidade de tratar o comportamento apenas como um evento redutível à física. Não haveria tampouco leis psicofísicas na medida em que não há repetições nem possibilidade de universalizar uma correspondência biunívoca entre um determinado estado mental e seu correspondente estado cerebral. A psicologia estaria sempre lidando com o anômalo, o que a impediria de ser uma ciência capaz de efetuar previsões seguras. Mas seria isto suficiente para vetar a possibilidade de uma ciência do comportamento? Poderíamos dizer que a psicologia se aproxima de algo como a metereologia, embora esta possibilidade alternativa de modelo de ciência não parece ter sido levada em conta por Davidson. Esta não tem leis, pelo menos não leis no sentido da ciência clássica, para quem a melhor metáfora do mundo seria o relógio, o exemplo perfeito de dispositivo causal e determinista. Isto nos encaminha para uma posição um pouco mais branda na discussão da existência e natureza de leis psicológicas. Estas poderiam ser apenas regularidades indutivas, ou seja, leis probabilísticas, cujo alto grau de incerteza nelas contida impedir-nos-ia de traçar qualquer tipo de previsão universal. Esta posição mais branda é defendida por Skinner. Sua caracterização de uma ciência do comportamento se aproximaria mais do modelo científico pós-moderno, no qual a ciência não é mais um inventário de certezas, mas algo que se constrói sobre um terreno de areia movediça e precisa equilibrar-se o tempo todo, através de constantes revisões. A metáfora das certezas, o demônio Laplaciano seria substituído, finalmente, pela aceitação da idéia desconfortável de algo erguido sobre um alicerce pantanoso, como nos sugeriu Popper.Ausência de fundamento sólido e expressão de probabilidade parece ser a essência da ciência pós-moderna. A mecânica quântica nos remete para esse novo modelo de ciência e se nelas podemos apontar leis, estas são de natureza probabilística. Neste caso, como apontou o filósofo americano Patrick Suppes, a psicologia não precisaria ser situada tão distante da física, ou pelo menos da micro-física. A predominância da probabilidade não põe em questão o estatuto de cientificidade da física, mas nem o da psicologia, tampouco. Mas há um outro aspecto envolvido na possibilidade de construção de uma ciência do comportamento da ciência do comportamento: a existência de leis especificamente comportamentais. Isto garantiria à ciência do comportamento sua esfera própria e a impossibilidade de reduzir o comportamento à sua dimensão exclusivamente fisiológica ou biológica. Da mesma maneira que a equação de Hodgkin Huxley (que descreve o fluxo iônico que controla a dinâmica dos impulsos nervosos) estabelece um domínio próprio para a neurociência que não pode ser reduzido à física, haveria regularidades na ação humana que não poderiam ser reduzidas nem tampouco explicadas pela fisiologia ou pela biologia. Mesmo sem falar de leis e sim de aproximações indutivas, Skinner defende a possibilidade de uma ciência do comportamento, na medida em que esta teria um objeto próprio, recusando, assim, o reducionismo fisiológico. Topamos aqui com mais uma diferença fundamental entre o behaviorismo radical e o metodológico. O behaviorista metodológico acredita na possibilidade de regularidades do comportamento tornarem-se leis universais ou generalizações universais. Esta é a perspectiva de Hull, que quis fazer uma ciência do comportamento a partir de modelos matemáticos, ou seja, matematizar o movimento dos organismos da mesma maneira que a física clássica se impôs a partir da matematização do movimento dos corpos físicos, descobrindo suas equações fundamentais.Skinner acreditava na existência de leis especificamente comportamentais, que surgem da interação não apenas de organismos com seus ambientes, mas da interação também com outros organismos, ou seja, interação entre vários comportamentos. Esta interação pode dar origem a variáveis ambientais novas, que determinarão, por sua vez, novos tipos inéditos de comportamentos. A riqueza proporcionada pela interação entre comportamentos os torna dificilmente previsíveis a partir do ponto de vista de outras ciências como, por exemplo, a física ou a biologia. Mas não é só a imprevisibilidade de comportamentos complexos que abre caminho para uma ciência do comportamento com domínio e objeto próprios. Este é construído na medida em que se assume a hipótese de que não há uma correspondência biunívoca entre a ocorrência de comportamentos e seus correlatos neurais/mentais – uma hipótese cada vez mais confirmadas pelas investigações neurocognitivas de pesquisadores como Libet e Wegner. É aqui que começa a ciência do comportamento. Ou seja, a causa de comportamentos novos tem de ser encontrada fora dos limites dos estados internos do organismo que os produz. É neste sentido que a fisiologia e a neurociência não podem nos dar uma descrição completa das interações que um organismo estabelece com seu meio ambiente onde estão presentes comportamentos de outros organismos. Da mesma maneira, é possível sustentar que comportamentos – em especial comportamentos de outros organismos - podem ser os determinantes de correlatos neurais/mentais de um organismo e não apenas ser produzidos por estes. Um exemplo típico deste último tipo de interação é a sala de aula do futuro proposta por Skinner como parte de suas tecnologias educacionais. Esta seria uma espécie de ambiente onde se entrecruzam diferentes comportamentos, predominantemente verbais que podem dar origem a novas (inesperadas) variáveis ambientais. Seria neste momento que “insights” ou percepções da novidade podem ocorrer, ou seja, quando um novo comportamento surge de uma nova intersecção de variáveis ambientais produzidas pelos organismos. É este o momento no qual podem nos ocorrer poemas : o sujeito é um grande nó no qual se cruzam variáveis ambientais e do qual o inesperado pode brotar. É neste sentido que não somos autores de poemas, mas tornamo-nos autores deles. A criatividade teria sua origem na interação entre comportamentos. A ciência do comportamento seria a ciência da criatividade humana. O comportamento teria, então, uma poiesis específica que o determina como um conjunto de fenômenos sui generis, cujo estudo de seus specimens merece uma disciplina à parte. Esta posição defendida por Skinner ecoa dizeres de Wittgenstein sobre a mente humana, que afirmava que “uma das idéias mais perigosas para o filósofo é supor que pensamos “com” nossas cabeças ou “em” nossas cabeças”. (ver Zettel, 1967). Isto quer dizer que, por exemplo, tentar abordar a natureza das relações interpessoais reduzindo-as a fisiologia seria um total contra-senso.Um contra-senso que se assemelharia à tentativa de prever o resultado de uma partida de futebol através do estudo da fisiologia dos jogadores. Esta é uma obviedade que se contrapõe, contudo, às pretensões da neurociência contemporânea, que, por sua opção metodológica de estudar o cérebro como se este estivesse numa proveta, esqueceu que ele se ramifica para um corpo que se movimenta e interage com seu meio ambiente. O erro de Skinner, contudo, foi supor que essa ciência do comportamento – a ciência das interações - esgotaria a investigação psicológica e que deveríamos considerá-la como o único objeto possível para a psicologia. Seus críticos, porém, fizeram pior ao negar a possibilidade de uma esfera ontológica própria do comportamento ao tentar reduzi-lo à fisiologia. Seria interessante, contudo, perguntar a Skinner (se pudéssemos) se ele poderia enumerar algumas dessas leis especificamente comportamentais. Pois, a despeito de inúmeros estudos na análise do comportamento, de humanos ou de infra-humanos nunca se pôde abstrair generalizações universais. A ciência do comportamento teria de se conformar em não se expandir apara além do estudo de casos, ou seja, a partir de aproximações indutivas. Não poderíamos construir uma gramática geral do comportamento, algo que se assemelharia a algo como a gramática das cores como foi proposta por Wittgenstein. A ciência das interações pode enriquecer-se com outras associações, como por exemplo, com a inteligência artificial social, ou seja, o estudo de como o comportamento de robôs pode influenciá-los mutuamente e de como esta interação, por sua vez, retroage sobre eles, criando ambientes complexos. Esta é a associação entre behaviorismo radical e um dos ramos mais importantes da ciência cognitiva contemporânea, qual seja, a Nova Robótica de Rodney Brooks - associação que propus no meu livro “Filosofia da Mente: Neurociência, Cognição e Comportamento” (2005). Ao contrário da robótica tradicional que aposta na expansão de memória e pré-determinação do comportamento, a nova robótica aposta na interação com o meio ambiente e com outros comportamentos. Tenta-se replicar a inteligência pela produção de comportamentos complexos e não pela replicação do cérebro (ou da mente) que os produziria. Comportamentos novos são chamados de emergentes e a probabilidade de prever quando eles acontecerão é também muito baixa. Contudo, na medida em que poderíamos ir construindo viveiros de robôs cada vez mais numerosos e complexos isto iria ampliando a possibilidade de testar os resultados das interações comportamentais. Em vez de estudar o comportamento, procuraríamos replicá-lo, tornando, assim, as interações comportamentais testáveis, permitindo atribuir a seus modelos uma razoável cidadania científica.
Mente, Cérebro e Consciência: João de Fernandes Teixeira é professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos. Autor de diversos livros na área de filosofia da mente e ciência cognitiva, dentre os quais destacam-se "Mente, Cérebro e Cognição" (Vozes, 2000), "Filosofia e Ciência Cognitiva" (Vozes, 2004) e "Filosofia da Mente: neurociência, cognição e comportamento" (Claraluz, 2005).
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