sábado, 4 de novembro de 2006

Sobre casamento


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"Todo hábito tece em torno de nós uma teia sempre mais sólida de fios de aranha; e logo percebemos que os fios se tornaram lagos e que nós mesmos ocupamos o centro, como uma aranha que se prendeu a si e que deve viver de seu próprio sangue. É por isso que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, todo o duradouro, o definitivo, é por isso que recomeça sempre, com dor, a romper em torno dele a teia: embora deva sofrer em conseqüência de muitos ferimentos, pequenos e grandes – pois é dele próprio, de seu corpo, de sua alma, que deve arrancar esses fios. Deve aprender a amar onde odiava e vice-versa. Não deve até mesmo ser impossível para ele semear os dentes do dragão no campo onde recentemente fazia correr os chifres da abundância. Disso se pode concluir se ele é feito para a felicidade do casamento".

Nietzsche (Humano demasiado humano)
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Cotidiano
(Chico Buarque) 1971

Todo dia ela faz tudo sempre igual,
Me sacode às seis horas da manhã,
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã.
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher,
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café.
Todo dia eu só penso em poder parar,
Meio-dia eu só penso em dizer “não”,
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão.
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão,
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão.
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor.
Todo dia ela faz tudo sempre igual,
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã.
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Casamento

Há mulheres que dizem: meu marido, se quiser pescar, pesque,
Mas que limpe os peixes.
Eu não.
A qualquer hora da noite me levanto,
Ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente na cozinha,
De vez em quando os cotovelos se esbarram,
Ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"e
Faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
Atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
Somos noivo e noiva.

Adélia Prado
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