Perante a lei (Franz Kafka)
Há uma porta que dá para a lei. Diante dela, um guardião, o guardião da porta da lei. Um homem simples chega e pede para entrar. O guardião responde que, naquele dia, não é permitido entrar. O homem pensa um pouco e pergunta quando poderá entrar. O guardião responde que de repente, mas não agora. Como a porta da lei está aberta, o homem simples se agacha para olhar para dentro por entre as pernas do guardião. O guardião impede o homem de olhar e o adverte que lá dentro há outras portas e outros guardiães, cada um mais forte e feroz que o outro.O homem simples não imaginava encontrar obstáculos, pois sempre pensara que a lei deveria ser acessível a todos os homens.O guardião lhe empresta um banquinho para que possa sentar-se à porta da lei e ficar esperando a hora de entrar. Passam-se os dias e os anos. O homem simples continua perguntando quando poderá entrar. O guardião lhe dá respostas vagas e impessoais, repetindo sempre que a hora de entrar ainda não chegou.O homem simples tira a roupa do corpo e tenta subornar com ela o guardião da porta da lei. O guardião não recusa: “Aceito, para que você não diga que não tentou tudo. Aceito, mas ainda não posso permitir a sua entrada”.Com o passar dos anos, o homem simples maldiz seu destino perverso, de dor, sofrimento e velhice sem poder cruzar a porta da lei, que ali continua, diante dele, emanando uma claridade que ofusca seus olhos cansados. Nada lhe resta senão a morte. Agonizando, ocorre-lhe perguntar ao guardião por que durante todos aqueles anos em que esperou, não apareceu nenhuma outra pessoa pedindo para entrar pela porta da lei. E o guardião responde: “Ninguém quis entrar por esta porta porque ela se destina apenas a você!... Agora, com sua morte, terei de fechá-la”.
Outra Praia (Carlos Heitor Cony)
Oleg Svinorg foi o único náufrago que conseguiu chegar a terra firme. O navio afundara ao largo, todos se afogaram. Somente Oleg, um gigante de 2 metros de altura, teve forças para nadar até a praia. Nem sabia que praia era. Um náufrago se salva em qualquer pedaço de terra. Encontrou desolação à sua volta. Campos cobertos de capim, rios apodrecidos, e em toda parte, miseráveis que nem puderam socorrê-lo, porque estavam mais famintos e desesperados do que Oleg. Perguntou se havia alguma coisa equivalente a um poder naquela ilha, não exatamente um governo, mas uma comissão qualquer que cuidasse de melhorar as condições em que todos viviam. Sim!... Havia uma comissão de notáveis que trabalhavam dia e noite para reformar o que fosse preciso e – aí sim – a ilha conheceria a prosperidade que todos desejavam. Oleg procurou saber onde se reuniam os salvadores da ilha. Foi lá e viu umas 500 pessoas discutindo se, no país em dificuldade, a taxa de câmbio deveria ser superior ou inferior a 6,2%, se os maiores de 60 anos teriam direito ao redutor de 25% acrescido pelo coeficiente do tempo de serviço, embora não houvesse serviço algum naquela ilha.Um pequeno grupo escrevia tudo o que era discutido e comunicava de tempos em tempos a novidade ao resto da ilha. Mas ninguém entendia como iam ficar as coisas e dava tudo na mesma! O mais importante, que inflamava corações e mentes, era a taxa de juros, que estava altíssima. E havia uma turma que achava a inflação pior do que a fome e o desemprego que atingia a todos. Para combatê-la, os juros deveriam ser aumentados, disciplinando o consumo, porque ninguém consumia nada.Oleg ouviu tudo e entendeu pouco, mas o bastante para atirar-se de volta às ondas e nadar em busca de outra praia.
Trecho do texto de Thiago CunhaThiago Cunha
Impressiona-me a forma como perseguimos a notícia. O furo de reportagem nos incentiva a superar os limites da máquina e do homem. Chegamos ao local do crime. Os rostos dos miseráveis parecem felizes com a nossa presença naquele lugar desconhecido. Sonham sair do ostracismo pelo caminho mais trágico: a notícia da morte violenta. Uma cena chocante: as pessoas sorriam enquanto rodeavam o morto. Achavam o máximo a possibilidade de ver alguém daquele fim-de-mundo nas páginas policiais do dia seguinte. Gritos de protesto? Nenhum. Busca por justiça? Inútil. Presente à cena do crime, a polícia cuidava de colher dados sobre o morto: idade, profissão, ligações com entorpecentes. Só. Entraria nas estatísticas. Dos pobres, é claro. Jamais um inquérito bem formulado como possuem as atrocidades cometidas contra pessoas da classe média e da classe alta. No mais, ninguém viu nada. Nem ouviu. Ninguém desconfiava de nada e de ninguém. Não havia motivos para que aquilo tivesse acontecido.E eis que a mãe da vítima, sentada no meio-fio, junto ao corpo do filho, vira-se para o repórter, verdadeiro abutre da tragédia, e oferece-lhe uma foto do filho morto, para que apareça no jornal do dia seguinte, no espaço destinado aos consumidores da barbárie. Quem será pior? Os abutres que perseguem a morte para registrá-la ou os que ratificam a loucura, devorando no jornal cada detalhe de um assassinato? Ou seremos todos, nós e eles, a serpente que devora a própria cauda?
Sobre o(a) autor(a):Estudante de Marketing de apenas 21 anos, Thiago já escreve seus textos com o propósito delançar um livro, futuramente.
Sobre o(a) autor(a):Escritor tcheco de língua alemã (1883-1924). Considerado um dos principais escritores da Literatura moderna. Retrata as ansiedades e a alienação do homem do século XX. Escreve ainda A Metamorfose (1916) e O Castelo (1926)
A verdadeira dívida externa. (Guaicaipuro Cautémoc)
Eu, Guaicaipuro Cautémoc, descendente dos que povoaram a américa há 40 mil anos, vim aqui encontrar os que nos encontraram há apenas 500 anos. O irmão advogado europeu me explica que aqui toda dívida deve ser paga, ainda que para isso se tenha que vender seres humanos ou países inteiros. Pois bem! Eu também tenho dívidas a cobrar. Consta no arquivo das Índias Ocidentais que entre os anos de 1503 e 1660, chegaram à Europa 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata vindos da minha terra!... Teria sido um saque? Não acredito. Seria pensar que os irmãos cristãos faltaram a seu sétimo mandamento.Genocídio?... Não. Eu jamais pensaria que os europeus, como caim, matam e negam o sangue de seu irmão.Espoliação?... Seria o mesmo que dizer que o capitalismo deslanchou graças à inundação da Europa pelos metais preciosos arrancados de minha terra! Vamos considerar que esse ouro e essa prata foram o primeiro de muitos empréstimos amigáveis que fizemos à Europa. Achar que não foi isso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que me daria o direito de exigir a devolução dos metais e a cobrar indenização por danos e perdas. Prefiro crer que nós, índios, fizemos um empréstimo a vocês, europeus. Ao comemorar o quinto centenário desse empréstimo, nos perguntamos se vocês usaram racional e responsavelmente os fundos que lhes adiantamos.Lamentamos dizer que não. Vocês dilapidaram esse dinheiro em armadas invencíveis, terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo. E acabaram ocupados pelas tropas da OTAN. Vocês foram incapazes de acabar com o capital e deixar de depender das matérias primas e da energia barata que arrancam do terceiro mundo. Esse quadro deplorável corrobora a afirmação de Milton Friedmann, segundo o qual uma economia não pode depender de subsídios. Por isso, meus senhores da Europa, eu, Guaicaipuro Cautémoc, me sinto obrigado a cobrar o empréstimo que tão generosamente lhes concedemos há 500 anos. E os juros.É para seu próprio bem. Não, não vamos cobrar de vocês as taxas de 20 a 30 por cento de juros que vocês impõem ao terceiro mundo. Queremos apenas a devolução dos metais preciosos, mais 10 por cento sobre 500 anos.Lamento dizer, mas a dívida européia para conosco, índios, pesa mais que o planeta terra!... E vejam que calculamos isso em ouro e prata. Não consideramos o sangue derramado de nossos ancestrais!Sei que vocês não têm esse dinheiro, porque não souberam gerar riquezas com nosso generoso empréstimo. Nas há sempre uma saída: entreguem-nos a Europa inteira, como primeira prestação de sua dívida histórica.
Sobre o(a) autor(a):Fala do cacique Guaicaipuro Cautémoc numa reunião com chefes de estado da Comunidade Européia.
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